sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Geometria Variável

Quando li a declaração de amor eterno que Veríssimo dedicou à sua primeira bola, em forma de crónica, viajei até ao Caramulo dos anos 70.
Em que nos deleitávamos em intermináveis jogos de futebol no pátio do Lusitano, antigo sanatório construído por meu avô.
Com a minha primeira bola.
Não era uma "nº5".
Não era de couro.
Não era sequer verdadeiramente uma bola.
O uso intensivo, os estrondosos choques contra as paredes do edifício cedo lhe roubaram a forma esférica.
Mas a imperfeição geométrica nunca foi problema, quando o tema é paixão.
E essa bola era objecto de desejo, veículo de sonhos.
Era jogada num campo, aos nossos olhos perfeito, em que as balizas não eram paralelas entre si.
Não eram sequer centradas no rectângulo de jogo.
Que, por sua vez, nem um rectângulo era.
Limitado, por um lado, pelas paredes do edifício, em forma de trapézio, e por outro por uma curva sebe de loureiros, que se interpunha entre nós e um desnível de mais de 2m.
Enorme abismo que nos separava do silvedo de onde frequentemente tínhamos que resgatar a preciosa bola.
Outras houve, efémeras tentativas de a destronar.
Lembro-me especialmente do dia em que o Jorge, vizinho e companheiro fiel desses jogos, surgiu com uma verdadeira bola "oficial".
De couro, nº5, que seu pai, empregado de um café na Av Lourenço Peixinho em Aveiro, lhe trouxe.
Podia ler-se ainda "Beira-Mar" escrito sobre o couro.
Mas, apesar da sua perfeição, mesmo sabendo que foi usada em jogos da primeira divisão, não nos conquistou.
Era demasiado dura, ameaça constante para as janelas vizinhas, e pesada demais para nós, então com 6 ou 7 anos.
Além disso já conhecíamos de cor os saltos caprichosos da nossa bola.
Já jogávamos com a trajectória ligeiramente curva que tomava.
Era a nossa bola.
E a nossa bola não se trai, não se troca.
Campeonatos sem fim eram jogados naquele improvável "teatro dos sonhos".
Que não trocaria por Highbury, Santiago Barnabeo ou Maracanã. Ou sequer pela Luz.
Porque são inexplicáveis as razões do amor absoluto.
Tornam tudo o resto relativo.
Geometria incluída.

Belo Horizonte, 28 de Agosto de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

normalidade

E eis que, à segunda jornada da Liga Sagres, a normalidade se instala.
O Sporting perde, o Benfica ganha in-extremis, o Porto goleia sabe-se lá como...
Deste lado do Atlântico, também o futebol mineiro parece quere retomar o seu natural rumo, para desgraça minha.
Depois de ter passado 8 jornadas em 1º lugar, o Atlético soma desaires consecutivos que o vão remetendo para meio da tabela.
Onde deverá acabar o Brasileirão.
E onde encontrará certamente o Cruzeiro, que depois de um início desastroso, vai agora conseguindo vitórias importantes que lhe permitiram já sair da zona de rebaixamento.
Felizmente temos o América, de regresso à Série B.
América que vi, com sincera emoção, ganhar ao Brasil de Pelotas por 3-1, em pleno Indepêndencia.
E esse meu regresso ao Horto, 4 anos depois da minha última visita, foi particularmente feliz.
Porque encontrei a mesma torcida de sempre,desta vez alegre, feliz e ansiosa. Porque ao contrário da fase descendente que o América enfrentava em 2005, o tempo é agora de subida, de reconstrução.
Mas continua coerente como poucas, unida como raras.
Tolerante como deve ser.
Insultando educadamente os torcedores rubros do Rio Grande do Sul que se aventuravam sem medo no meio desse mar verde que cobria a rua.
Porque há que respeitar o esforço de quem enfrentou uma viagem de mais 36h de autocarro para ver a sua equipa jogar. E perder.
Tomando cerveja em bares improvisados em quintais.
Repartindo-a, pois assim exige a generosa dimensão das garrafas.
Dentro do estádio, que há muito não via 10.000 espectadores nas bancadas, a sensação é a de estar em família. Entre amigos. Entre Belorizontinos tradicionais, que gostam da cidade, que gostam dos bairros.
Onde reina a tranquilidade apesar da ansiedade inerente ao jogo.
Onde a conversa corre solta, onde se tratam os jogadores por tu.
E foi com incontida emoção que vi o primeiro golo do Coelho, daqueles que só no futebol Brasileiro se permite. Em que o atacante, em vez da eficácia do golo, preferiu o espectáculo, ao driblar o goleiro, pavoneando-se depois sobre a linha de golo.
Ironicamente foi esse desejo de espectáculo que poderia ter condenado o América a mais um ano de Série C.
Que em busca de obras de arte, levou ao desperdício golos irritantemente fáceis que matariam o jogo.
Antes do empate dos Gaúchos.
Foi depois preciso esforço e determinação para voltar a marcar.
E festejar o regresso do Coelho.
Com cerveja e pão com linguíça. Deliciosa iguaria rivaliza com o feijão tropeiro do Mineirão.
E que me fará voltar em 2011.
Com o América a disputar então a subida à Série A, quem sabe...
Porque o Coelhão está de volta!
Venha para já o título da Série C.
Belo Horizonte, 24 de Agosto de 2009

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Independência

Do meu ritual mineiro é parte essencial uma visita a um dos estádios de Belo Horizonte para assistir a um jogo de futebol.
Perdida a oportunidade de ver o Atlético empatar com o Palmeiras no Mineirão, desesperava já com a perspectiva de falhar pela primeira vez essa etapa.
O alívio chegou finalmente graças ao Renato, "Americano" incondicional, que comprou um bilhete para mim, mesmo desconhecendo a minha disponibilidade...
Acto de fé que me valerá uma entrada no Independência, para o América - Brasil de Pelotas, que poderá decidir o regresso do "Coelho" à Série B do Brasileirão.
Salvo o exagero, o América Futebol Clube, está para o futebol mineiro como o Sporting está para o actual futebol Português.
Clube elitista, que conta na sua torcida com ilustres Belorizontinos, não consegue rivalizar com o popular Atlético, nem com o eficaz Cruzeiro.
Mas nem a travessia do deserto desmotiva a fiel torcida que acompanha o clube na série C.
Por isso não admira que, perante a perspectiva da subida a um patamar mais consentâneo com a sua história, o Independência encha no próximo Domingo com camisolas verdes do Coelho.
Pessoalmente espero que o estádio que viu no mundial de 50 a derrota da Inglaterra frente aos EUA, veja o América subir mais um degrau rumo à série A.
Para isso há que derrotar o Brasil de Pelotas.
No Domingo.
No Independência.
Belo Horizonte, 14 de Agosto de 2009

terça-feira, 11 de agosto de 2009

meia-rendição

É meia rendição este texto.
Rendo-me ao facto de o Benfica de Jorge Jesus estar a jogar bem. Com vontade e paixão.
Ainda não provou nada, é certo. Mas já mostrou algo.
Não venceu competições oficiais. Mas ganhou troféus.
E, se ainda apresenta falhas evidentes na defesa, desequilíbrios flagrantes no plantel, mostra já importantes virtudes.
Virtudes que transfiguraram Di Maria.
Que permitiram que Javi Garcia fizesse esquecer Katsouranis.
Que resgataram Aimar e Saviola do marasmo.
Que, espero, revelem finalmente Fábio Coentrão.
E que façam o Luis Filipe surpreender a Luz…
Virtudes que se esperam duradouras, pois os pontos só começam a ser contados no próximo fim-de-semana.
Mas que já permitiram uma estranha conquista
Porque, ver o Miguel Sousa Tavares reconhecer a qualidade do Benfica, com ironia deslavada mas sem o habitual ódio destilado em grandes quantidades, é já meia-vitória.
Por isso este texto é meia-rendição.
A bandeira branca virá com a conquista da Liga…

Belo Horizonte, 11 de Agosto de 2009